HISTÓRIAS

Acordei do coma…

Acordei do coma exatamente no momento em que ouvi meu filho sussurrar:

— Se ele morrer, colocamos a velha num asilo.

O sangue gelou nas minhas veias.
Por instinto, mantive os olhos fechados.

Eu estava internado no hospital municipal do Méier, no Rio de Janeiro, envolto em dor, escuridão… e vozes familiares ao meu redor. Tinha sofrido um AVC e os médicos não sabiam se eu acordaria.

Mas eu acordei.

E acordei ouvindo meus próprios filhos falarem como se eu já estivesse morto.

Era o Eduardo, meu filho mais velho.
E a Gabriela, minha filha caçula.

Eles acreditavam que eu ainda estava inconsciente, à beira da morte.

Eduardo se inclinou perto da cama e falou em voz baixa:

— Quando ele se for, a gente coloca a mamãe num asilo. É melhor do que deixar ela sozinha.

Gabriela suspirou, impaciente:

— Tudo bem… mas precisamos organizar a papelada. E depois vendemos a casa. Dividimos tudo e pronto.

Meu coração falhou por um segundo.

Eu tinha lutado para sobreviver.
Lutado para voltar.
E aquela era a primeira conversa que eu ouvia dos filhos para quem dediquei toda a minha vida?

Quis abrir os olhos.
Quis gritar.
Quis perguntar em que momento meus filhos haviam se transformado em estranhos, esperando meu corpo esfriar para fazer contas.

Mas fiquei imóvel.
Respiração controlada.
Olhos fechados.

Porque algo na frieza daquelas vozes me paralisou mais do que o coma.

— Finge que está triste por um tempo — disse Eduardo. — É isso que as pessoas esperam.

Quando eles saíram do quarto, o monitor ao meu lado começou a apitar.
Não de dor.
Mas de indignação.

Horas depois, durante a madrugada, a enfermeira ajustou o lençol. Abri os olhos por alguns segundos e sussurrei:

— Chame minha esposa. E diga que ela não fale com ninguém… só comigo.

Lúcia chegou depois da meia-noite. Suas mãos tremiam quando seguraram as minhas. Estava exausta, envelhecida pelo medo de me perder.

Contei tudo o que ouvi.

Ela não chorou alto.
Chorou em silêncio.
Aquele choro contido de quem percebe que dedicou a vida inteira a pessoas que já não a enxergam como mãe — apenas como obstáculo.

— Nós vamos embora — eu disse.
— Amanhã.

Ela me olhou, assustada.

— E os nossos filhos?

— Eles já foram embora há muito tempo — respondi.


Recebi alta dois dias depois.

Mas, ao chegar em casa, vivi a maior decepção da minha vida.

Meu quarto estava revirado.
Documentos mexidos.
Gavetas abertas.

No escritório, encontrei cópias de escrituras, apólices de seguro e extratos bancários separados em pastas. Tudo organizado… não para cuidar de mim, mas para me substituir.

Eles já estavam se preparando.

Naquele momento, algo dentro de mim morreu de vez.

Não discutimos.
Não confrontamos.
Não explicamos nada.

Em silêncio, vendi a casa.
Transferi o que era meu e de Lúcia para uma conta protegida.
Mudei testamentos.
Cancelei procurações.

E, quando tudo estava pronto, deixamos apenas uma carta sobre a mesa da sala.

“Não morremos.
Mas também não somos mais parte dos seus planos.
Vivam com o que restar.”

Na manhã seguinte, embarcamos.


Hoje vivemos em outro país.
Um lugar simples. Tranquilo.
Onde ninguém nos conhece pelo que temos, apenas por quem somos.

Faço fisioterapia. Caminho devagar.
Lúcia voltou a sorrir aos poucos.

Mas algo mais também começou.

Aprendi que criar filhos não garante gratidão.
Que amor não é contrato vitalício.
E que às vezes, sobreviver… é também saber partir.

Acordei do coma naquele hospital.
Mas foi ali que despertei, de verdade, para a realidade.

E desta vez, não fechei os olhos.

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