EU PENSEI QUE ELE ERA SÓ MEU TREINADOR — ATÉ OUVIR O QUE ELE DISSE SOBRE MIM.

Eu estava exausta depois da corrida. Minhas pernas pareciam gelatina, e eu provavelmente ainda tinha metade de uma barrinha de granola presa na garganta. Mesmo tendo corrido apenas 5 km, despenquei na cadeira dobrável como se tivesse terminado uma maratona.
O treinador Tate se aproximou, ofegante, com o suor escorrendo pelo braço tatuado. Ele sempre parecia um pouco intimidador — como alguém que já foi segurança de boate ou que anda de moto sem capacete. Mas naquele dia, ele usava a mesma camiseta da corrida que a gente — Girls on the Run, embora a dele mal cobrisse os bíceps.

Ele me entregou uma garrafinha de água e um saquinho de papel marrom amassado com meu nome rabiscado.
— Boa corrida, Mia — disse ele, bagunçando meu cabelo. — Você superou a dor. Tenho orgulho de você.
Revirei os olhos tentando parecer tranquila. Mas, sim… aquilo significou algo pra mim.
Alguns minutos depois, enquanto eu revirava o saquinho procurando o biscoito que sabia que ele tinha colocado lá, ouvi sua voz conversando com um dos voluntários da corrida, logo atrás de mim.
— Não me importa o que o prontuário dela diz — ele disse. — Aquela garota tem garra. Eu vejo isso toda vez que ela duvida de si mesma e continua mesmo assim.
Eu congelei.
Eu sabia exatamente de qual prontuário ele estava falando.
E o que estava naquele documento não deveria sair da sala da coordenação.
O que ele disse em seguida apertou meu peito — e é o motivo pelo qual até hoje não contei para a minha mãe o que realmente aconteceu no último quilômetro.
O treinador Tate não estava falando de uma ficha de desempenho físico ou anotações de treino. Era algo mais íntimo, algo que poucos conheciam. Um ano antes, eu tinha sido diagnosticada com dislexia, e a escola tinha virado uma montanha impossível de escalar. Só de escrever meu nome no quadro minhas mãos tremiam, ler textos era difícil, e as provas eram um pesadelo. A orientadora registrava tudo: minhas dificuldades, choros, reuniões sobre se eu deveria continuar em matérias mais difíceis ou mudar para algo mais fácil.
Aquela ficha? Ia muito além das notas. “Mia: Possíveis dificuldades.” Alguns achavam que eu não conseguiria lidar.
Mas o treinador Tate discordava.
— Ela não precisa de ninguém dizendo o que ela não pode fazer — disse ele ao voluntário. Sua voz ficou mais baixa, mas eu forcei para ouvir cada palavra. — A força dela não se descreve. Você vai ver. Deixe que ela prove que estão todos errados.
Minhas bochechas queimaram. Ninguém nunca tinha falado de mim assim. Como se eu fosse mais do que erros e limitações. Como se eu pudesse ser algo.
Fiquei me perguntando por que o treinador Tate tinha minha ficha. Por que ele parecia tão certo sobre mim, enquanto nem eu acreditava?
Depois da corrida, evitei falar com ele. Peguei minha medalha (que parecia mais pesada do que o normal) e murmurei que ia procurar minha mãe. Ela estava mexendo no celular perto do estacionamento, completamente alheia ao turbilhão dentro de mim.
— Ei, campeã! — disse ela abrindo os braços para me abraçar. — Como foi?
— Foi… normal — dei de ombros, guardando a medalha na mochila. Não consegui encará-la. Ainda não.
Minha mãe arqueou a sobrancelha.
— Só isso? Você treinou por meses.
Chutei uma pedrinha no chão.
— Foi normal. — E, mais baixo: — Quase desisti na metade.
O rosto dela se suavizou.
— Ah, meu amor… aconteceu alguma coisa?
Balancei a cabeça rapidamente. Eu não ia contar. Se ela soubesse da ficha, começaria a desconfiar do treinador Tate. E se soubesse que ele teve acesso? Ela ficaria decepcionada. Minha mãe odiava quando me tratavam diferente por causa da dislexia. Dizia que “pena” era um veneno.
Então forcei um sorriso.
— Não. Só estou cansada.
O treino seguinte foi estranho. Eu não parava de olhar para o treinador Tate, tentando adivinhar se ele ia mencionar o que eu tinha escutado. Mas ele agiu normalmente. Normal até demais. Brincou com as meninas, nos incentivou nos exercícios, distribuiu água como sempre.
Até o fim do treino.
Enquanto a luz do dia desaparecia, ele me pediu para ficar mais um pouco enquanto alongávamos. Meu estômago se revirou. Será que ele ia me confrontar por ter escutado? Como ele sabia tanto sobre mim?
Mas ele apenas se sentou na grama ao meu lado com um pequeno caderno.
— Já ouviu falar em diário? — perguntou casualmente.
— Não. Isso é coisa de poeta, né? — respondi desconfiada.
Ele riu.
— Nem sempre. Às vezes é coisa de lutador. De quem precisa colocar os pensamentos em ordem.
Franzi a testa. O que isso tinha a ver comigo?
Ele abriu o caderno e me mostrou uma página com uma letra bagunçada.
— Esse é o meu. Eu escrevo quando a vida pesa. Dias bons, ruins, coisas que aprendi… me ajuda a ver melhor.
Olhei para os rabiscos. Estavam cheios de borrões, palavras riscadas. Mas isso não importava. Ele escrevia mesmo assim — e isso era o que valia.
— Eu não sou boa com escrita — sussurrei. — Demoro demais.
— E daí? — disse ele. — Aqui ninguém vai te dar nota. Só tenta. Uma frase por dia. Escreve sobre seus treinos, suas vitórias, suas frustrações… o que quiser.
Ele me entregou o caderno e se levantou.
— Começa amanhã. Vê no que dá.
No começo, achei tudo aquilo bobo. Quem escreve sobre sentimentos por vontade própria? Mas depois de uma semana, percebi que não era sobre perfeição. Era sobre ser honesta. Escrevi sobre o quanto era difícil correr. Sobre confundir esquerda com direita nos exercícios. Sobre como doía quando diziam que eu não podia por causa da dislexia.
Aos poucos, algo mudou. Escrever me ajudou a entender não só a corrida, mas a escola também. Quando os problemas de matemática pareciam impossíveis ou as leituras me sobrecarregavam, eu lembrava do que o treinador Tate dizia: o progresso nem sempre é rápido, mas é progresso.
Um dia, depois do treino, criei coragem e perguntei sobre a ficha. O campo estava vazio, o céu tingido de laranja e rosa.
— Como você soube da minha dislexia? — gritei.
Ele se encostou na cerca.
— Sua mãe me contou.
— O quê? — ofeguei. — Ela prometeu que não ia contar!
— Ela não queria trair sua confiança — disse ele com calma. — Só queria que eu soubesse se você precisasse de ajuda. Para poder apoiar sem julgar.
Pisquei, tentando processar. Minha mãe confiou nele para me apoiar, não para me expor. E ele fez isso. Do jeito dele, meio bruto, mas verdadeiro.
— Por que você se importa tanto? — perguntei baixinho.
Ele coçou o pescoço e sorriu.
— Digamos que eu já estive no seu lugar. Os rótulos colam, menina. E se a gente deixar, eles viram verdade.
Continuei me esforçando — não só nas corridas, mas em tudo. Comecei a me classificar nas provas. Voltei a levantar a mão em sala de aula, mesmo que demorasse mais para responder.
No penúltimo treino da temporada, o treinador Tate me chamou de novo. Me entregou um novo caderno.
— Você merece isso — disse ele. — Continue lutando. Por você.
Com os olhos marejados, assenti.
— Obrigada, treinador.
Hoje eu entendo que o treinador Tate me ensinou mais do que corrida. Ele me ensinou a acreditar em mim mesma mesmo quando o mundo inteiro duvida. A vida traz desafios — mas a forma como escolhemos enfrentá-los é o que nos define.
Mesmo com dislexia, medo ou erros, somos mais fortes do que pensamos.
E se você chegou até aqui, te desafio a encontrar o seu jeito de escrever. Sua maneira de organizar o caos e focar no que importa.
Acredite — faz toda a diferença.