HISTÓRIAS

Sou pai solo há seis anos.

Desde que a mãe da Lili nos deixou, venho fazendo o impossível para criar minha menina — e, de algum jeito, ela sempre consegue ser minha força quando o mundo insiste em me esmagar.

De dia, trabalho na equipe de manutenção pública da cidade. À noite, viro faxineiro num prédio comercial. Duas jornadas, pouco sono, contas apertadas… mas a Lili não falta nada.
Ela é meu motivo.

E o mundo dela é o balé.

Quando pediu para entrar numa escola de dança, comecei a juntar cada centavo. Pulei almoço, aceitei horas extras, recusei folgas. Guardava tudo num envelope amassado onde escrevi “LILI – BALÉ” com marcador torto.
Valeu a pena. Cada moedinha.

Meses de ensaio levaram ao grande espetáculo da escola. Seria na sexta-feira, às 18h30.
Eu prometi a ela — olhando nos olhos — que seria o primeiro na plateia.

Mas às 16h30 daquele dia, um cano estourou em uma obra da prefeitura. Eu e a equipe passamos mais de uma hora com água suja até os joelhos. Às 17h55, eu ainda estava completamente encharcado, fedendo a encanamento velho, uniforme imundo, botas pesadas.

Mesmo assim, corri.
Corri como se o mundo estivesse acabando.

Cheguei no teatro atrasado, ofegante, molhado. Sentei no fundo, enquanto algumas pessoas torciam o nariz para meu estado, mas eu só procurava uma coisinha: minha filha.

E então, ela entrou no palco.

Lili olhou para a plateia, procurando. Quando me encontrou, mesmo lá no fundo, seu sorriso explodiu como um raio de sol atravessando tempestade.
Naquele momento, percebi: ela não ligava para minhas roupas sujas, para o cheiro de cano, para nada.

Para ela, o pai estava lá.
E isso bastava.

Na volta para casa, ela dormiu no metrô com a cabeça no meu ombro, o coque de bailarina torto, a sainha rosa toda amassada. Eu a segurava com cuidado, como se fosse vidro.

Foi então que percebi um homem na nossa frente: terno caro, cabelo alinhado, relógio que valia mais que meu carro inteiro.
Ele levantou o celular… e tirou uma foto.

Meu sangue ferveu.

— Você acabou de fotografar minha filha? — rosnei, levantando o corpo para protegê-la.

O homem congelou.

— M-me desculpe. Eu… não devia. Ela só… me lembrou alguém.

Exigi que apagasse ali, na minha frente.
Ele apagou.
Ficou pálido.
E desceu no próximo vagão, sem olhar para trás.

Tentei ignorar o arrepio que percorreu minha nuca.

Na manhã seguinte, fui acordado por batidas fortes na porta.
Quando abri, dois homens enormes estavam ali. Um deles, nitidamente segurança particular.

E atrás deles… o homem do metrô.

Meu coração disparou.

— O que vocês querem? Vocês são do Conselho Tutelar? O que está acontecendo?! — perguntei, protegendo a entrada com o corpo.

O homem me encarou como se estivesse prestes a dizer algo que adiava há muito tempo.

— Senhor Leonardo… — respirou fundo — por favor, arrume as coisas da Lili.

Um gelo percorreu minha espinha.

— Por quê? — minha voz saiu rouca. — O que vocês querem com a minha filha?

Ele engoliu seco. E então, finalmente, disse:

— Porque a Lili… é minha filha também.

Por um segundo, minha mente apagou.

Ele continuou, a voz trêmula:

— A mãe dela… a sua ex… me contou tudo pouco antes de falecer. Eu não sabia da existência da Lili. Não sabia que tinha uma filha. Vi ela ontem no metrô e… reconheci os olhos. Os meus olhos.
Eu não quero tirá-la de você. Mas quero fazer parte da vida dela. Quero ajudá-la. Quero ser pai.

Eu cambaleei para trás, segurando a porta.

Raiva, medo, alívio, desespero… tudo se misturou.

— E por que apareceu assim? Com segurança? Me assustando? — perguntei.

Ele passou a mão no rosto, envergonhado.

— Porque eu não sabia como me aproximar. E tenho… uma vida complicada. Eu só tinha certeza de uma coisa: precisava ver vocês hoje.

Ficamos em silêncio por muitos segundos que pareceram horas.

Por fim, respirei fundo.
Olhei para dentro do apartamento, onde Lili ainda dormia, abraçada ao tutu rosa.

E percebi algo:
eu tinha lutado sozinho a vida inteira. Talvez fosse hora de aceitar ajuda — desde que fosse para o bem dela.

— Vamos com calma — falei enfim. — Não vai levar minha filha a lugar nenhum sem que eu esteja junto. Mas… podemos conversar.

O homem assentiu, com lágrimas contidas.

E assim, naquela manhã, percebi que minha vida estava prestes a mudar — talvez para melhor.
Porque, no fim, tudo que importa é que Lili nunca deixe de brilhar.

E agora… talvez ela tivesse mais um mundo inteiro para iluminar.

Artigos relacionados