EU NÃO FALAVA COM MEU PAI HÁ 6 ANOS — AGORA SÓ POSSO VÊ-LO ATRAVÉS DE UM VIDRO.

Mesmo eu já tendo trinta anos e meu próprio apartamento do outro lado da cidade, ele ainda me chamava de “minha filhinha”. Éramos muito próximos — até que deixamos de ser.
Seis anos atrás, tivemos uma briga. Uma briga boba, para ser honesta. Começou por política, mas por baixo disso havia dor, controle e duas pessoas que já não sabiam mais falar a mesma língua. Naquele dia, bati a porta na cara dele. Nenhum de nós voltou a procurar o outro.

E então veio a ligação.
Uma mulher do asilo me informou que ele havia sido internado há um mês. Sintomas iniciais de demência, seguidos por pneumonia. A equipe estava reduzida. Visitas não eram permitidas. Eu nem sabia que ele tinha saído de casa.
Dirigi até lá na manhã seguinte, o coração disparado como se estivesse indo a um tribunal. Quando ele me viu do lado de fora da janela, apenas me encarou. Acenei. Ele piscou. E então, devagar, se sentou.
Aquela segunda foto? Foi nosso primeiro contato em quase cinco anos. Com ou sem vidro, aquilo me desmoronou.
Ele não conseguia falar direito, mas levantou a mão, e eu encostei a minha. Disse que sentia muito. Não sei se ele ouviu ou entendeu. Mas ele fechou os olhos por um instante, como se estivesse guardando algo sagrado.
Não contei a ninguém que fui. Nem ao meu irmão, nem ao meu parceiro. E até agora não ouvi a mensagem da enfermeira que está no meu celular.
Talvez eu ainda não esteja pronta pra escutar.
Esperei três dias até finalmente dar play na mensagem. A enfermeira falava com calma, mas de forma firme: “Seu pai está mudando. Ele está pedindo por você. Por favor, venha logo.”
Ele… está me pedindo? Isso não fazia sentido. Meu pai não me pedia nada desde nossa briga. Em feriados, aniversários e reuniões de família, ele mantinha distância. Por que agora, de repente, ele queria me ver?
A culpa me consumia. Talvez essa fosse minha chance de acertar as coisas antes que fosse tarde demais. Arrumei uma mochila, beijei meu parceiro sem dizer aonde ia (porque nem eu sabia direito), e voltei para o asilo.
Dessa vez, me deixaram entrar. O saguão cheirava a desinfetante e carpete velho, e as luzes fluorescentes zumbiam. Uma jovem assistente me conduziu por um corredor cheio de portas entreabertas, revelando vislumbres de vidas pausadas pela idade ou pela doença. Ela parou e bateu suavemente na Porta 12, no fim do corredor.
“Entre”, disse uma voz fraca que eu mal reconheci como sendo a do meu pai.
Parar na entrada do quarto me congelou. Ele parecia menor do que eu lembrava, os ombros largos agora encolhidos sob cobertores. O cabelo estava quase todo grisalho, e o rosto, mais fino e vulnerável. Mas os olhos azuis intensos, que sempre viam além das mentiras, continuavam os mesmos.
— Oi — falei com nervosismo, parada perto da porta.
— Fecha a porta — disse ele com clareza, me surpreendendo. — Você tá com cara de quem vai fugir.
Hesitei, mas obedeci. Sentar na cadeira ao lado da cama dele parecia um sonho onde tudo é familiar, mas algo está estranho. Ficamos em silêncio por um tempo. Ele me observava enquanto eu olhava para os desenhos do cobertor, esperando.
Finalmente, ele falou:
— Por que você veio?
A pergunta me pegou de surpresa. Não era óbvio? Porque ele estava doente, precisava de alguém, e eu sentia que devia… Mas nenhuma dessas respostas parecia verdadeira o suficiente para ser dita.
— Recebi sua mensagem — gaguejei. — Disseram que você me chamou.
Ele assentiu devagar, como se confirmasse algo para si mesmo.
— Eu queria sua presença. Antes que…
Ele parou, deixando o resto subentendido.
Antes do quê? Antes que ele me esquecesse? Que perdesse a fala? Que morresse? Todas essas possibilidades pairaram no ar.
— Você se lembra da nossa última conversa? — perguntei com delicadeza, esperando raiva ou decepção.
Fiquei surpresa quando ele riu — um riso seco, áspero.
— Claro que lembro. Você saiu me chamando de teimoso e cabeça-dura. O que é justo.
Minha boca se abriu.
— O quê?
— Ah, não faça essa cara de choque — disse ele, abanando a mão. — Eu sabia que era difícil. E você também não era fácil, querida. Você herdou minha fúria, sabia?
Pela primeira vez em anos, sorri. Por ele, por nós, pela ironia de estarmos ali, tentando curar feridas antigas enquanto a vida era tão incerta. Algo naquele riso quebrou o gelo.
Naquele dia, conversamos por horas. Sobre tudo e sobre nada. Sobre a mamãe, cuja morte, seis anos atrás, foi o início do nosso afastamento. Ele disse que não entendia bem minha profissão, mas que tinha orgulho. Falamos sobre meu irmão, o pacificador da família, que provavelmente nos ressentia por tanto tempo perdido.
Apesar da fragilidade, ele apertou minha mão com força e disse:
— Nunca deixei de te amar. Só nunca soube como demonstrar.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
— Eu também nunca deixei de te amar, pai.
Duas semanas depois, recebi outra ligação. Dessa vez, foi meu irmão. A voz dele falhou ao me dar a notícia: nosso pai havia falecido tranquilamente enquanto dormia.
Chorei mais do que imaginava. Não apenas porque ele se foi. Mas porque nos encontramos a tempo. Porque nos perdoamos. Porque o amor venceu.
No velório, várias pessoas me contaram histórias sobre a generosidade, o humor e a bondade do meu pai. Cada relato revelava um homem que eu queria ter conhecido melhor. Segurando uma rosa branca ao lado de seu túmulo, compreendi algo importante:
Nunca é tarde para consertar o que foi quebrado. A vida é complexa e cheia de reviravoltas. As pessoas se machucam — de propósito ou não. Mas o perdão é a ponte que nos permite seguir juntos, mesmo que só por um instante.
Ligue. Escreva. Vá até lá. Reconecte-se como for possível.
Pode ser que você não tenha outra chance.